Até a virada deste século, o transplante de medula óssea era o principal recurso da medicina para enfrentar a leucemia mieloide crônica (LMC), uma das mais frequentes doenças onco-hematológicas. Ela é caracterizada pela produção exagerada na medula óssea dos neutrófilos, que são um tipo de glóbulo branco responsável pela defesa imunológica do nosso organismo. A virada terapêutica veio em 2001 com o lançamento dos inibidores da tirosina quinase, medicamentos que tornaram a LMC uma enfermidade controlável para a grande maioria dos pacientes, reservando os transplantes para casos muito específicos.
Diferentemente de outras enfermidades onco-hematológicas e da maioria das demais leucemias que estão associadas a múltiplas mutações genéticas, a LMC é provocada por uma única alteração, expressa em um cromossomo conhecido como Filadélfia. Essa especificidade explica a razão dos inibidores da tirosina quinase – medicações de terapia-alvo de uso oral que bloqueiam a reprodução exagerada das células – terem revolucionado o tratamento dessa doença. Tomando a medicação continuamente ao longo da vida, o paciente consegue manter a doença em remissão.
Quando não é tratada, a LMC evolui para uma forma mais aguda e severa. Até o desenvolvimento dos inibidores da tirosina quinase, isso significava que o paciente ou se submetia a um transplante de medula óssea ou teria três ou quatro anos de sobrevida, condição que fazia da LMC o maior motivo de transplantes do gênero do mundo.
Após duas décadas do surgimento desses inibidores, estudos já demonstraram que os pacientes que fazem uso regular e adequado dessa terapia, com o suporte de especialistas, têm a mesma taxa de sobrevida das pessoas que não têm a doença.
Inovação em três gerações
Atualmente, já existe um inibidor da tirosina quinase de terceira geração. Os de primeira geração (imatinib) e de segunda geração (dasatinib e nilotinib) já estão disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS). De terceira geração, o ponatinib é indicado especificamente para os casos de pacientes que, por uma característica genética específica e rara, não respondem adequadamente ao tratamento com os demais.
Todos eles podem apresentar efeitos colaterais, que quase sempre desaparecem depois de alguns meses de uso e também são bem manejáveis pelos médicos, inclusive por meio da troca de um inibidor por outro. É importante que o especialista avalie quando e como efetuar as trocas, além de estar atento a interações medicamentosas, caso o paciente faça uso de medicações para outros problemas de saúde.
Apenas 9% dos pacientes não se beneficiam dos inibidores ao longo da vida. Isso ocorre quando há mutações genéticas que tornam os inibidores menos eficientes ou quando os efeitos colaterais do tratamento não são controláveis mesmo com a mudança do inibidor ou, ainda, quando a LMC é diagnosticada em estágios muito avançados. Nesses casos, o transplante de medula óssea volta a ser uma alternativa. Quando esse procedimento é indicado em tempo hábil, com o paciente na fase crônica, ele apresenta 70% a 90% de chances de cura.
Adesão é a melhor escolha
Apesar dos benefícios dos inibidores da tirosina quinase, até 25% das pessoas em tratamento de LMC no mundo não aderem corretamente a ele, número que aponta para falhas na educação do paciente e/ou no monitoramento pelas equipes médicas. Estas precisam de boa qualificação e preparo para acompanhar os pacientes ao longo de toda a sua jornada terapêutica, inclusive gerenciando os efeitos colaterais, uma das razões que levam ao abandono do tratamento.
Acompanhando regularmente os pacientes, os especialistas também poderão executar uma tarefa tão importante quanto a aplicação correta do protocolo medicamentoso: promover o monitoramento molecular por meio dos exames de RT-PCR (Reação em Cadeia da Polimerase em Tempo Real - Transcriptase Reversa), metodologia que mede a quantidade circulante no sangue do gene associado à doença. A medição serve para verificar com precisão a eficácia dos inibidores e promover ajustes na estratégia medicamentosa. Esse exame também já é realizado no âmbito do SUS.
Até 50% dos pacientes adequadamente tratados com inibidores da tirosina quinase atingem a chamada resposta molecular profunda, isto é, quando o exame de RT-PCR não encontra mais no sangue do paciente o gene relacionado à LMC. Quando isso ocorre de forma duradoura, é possível suspender a medicação, uma vez que 30% a 40% desses pacientes podem estar curados da LMC. Os protocolos de suspensão do uso dos inibidores foram validados há aproximadamente cinco anos e trazem um novo horizonte no tratamento da doença. Além disso, reafirmam a importância de seguimento adequado e adesão ao tratamento. É fundamental que a interrupção do uso do medicamento seja supervisionada por um especialista experiente e é imprescindível o monitoramento mensal rigoroso para eventual reintrodução do inibidor.
Diante dos bons recursos disponíveis, resta aos portadores de LMC – uma doença que afeta de cinco a sete pessoas por 100 mil habitantes ao ano no Brasil – fazer a sua parte: aderir ao tratamento e aproveitar essa bem-vinda revolução que os inibidores da tirosina quinase trouxeram no enfrentamento da doença.
Fonte: Fábio Rodrigues Kerbauy - CRM/SP 83.219
Data da última atualização: 24/9/2021